Pensava-se, antes do estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa/MCTI e Universidade Federal do Amazonas – UFAM, que as corredeiras do Rio Madeira serviam como barreira total para separar duas espécies de boto-vermelho, Inia boliviensis e I. geoffrensis. A distribuição de I. boliviensis era considerada restrita ao território boliviano até acima das corredeiras do Rio Madeira, sendo as principais a de Jirau e Teotônio, e que abaixo, à jusante ocorresse somente I. geoffrensis. Mas, alguns autores já mencionavam a ocorrência de botos entre as corredeiras, e que estes poderiam eventualmente ultrapassar essas barreiras. No entanto, nenhum estudo identificou esses indivíduos para saber a que espécie pertenciam, se eram nova espécie ou se tratava da mesma espécie que ocorria à montante das corredeiras, ou até se por alguma razão, as duas espécies eram capazes de reproduzir entre si, nessas localidades.
O estudo do Inpa/MCTI e Ufam não só identificou essas espécies, como percebeu que as corredeiras não funcionavam como barreira completa entre elas. “Nós verificamos primeiramente que I. boliviensis ultrapassava a área de corredeiras e ocorria até próximo do município de Borba (AM), no Baixo Rio Madeira, quase na região de encontro com o Rio Amazonas. Para essa constatação, analisamos apenas marcadores de DNA mitocondrial, que só permite observar a herança materna. No entanto, com esse tipo de marcador não é possível determinar a presença de híbridos”, explica uma das autoras dos estudos, Waleska Gravena.
Para a surpresa dos pesquisadores, que buscavam entender com esse estudo a distribuição das duas espécies de boto-vermelho, I. boliviensis e I. geoffrensis, na região do Rio Madeira; a análise do material genético dos animais que viviam entre as corredeiras lhes rederam mais uma descoberta. “Com os marcadores de DNA nuclear, que definem também a herança paterna, conseguimos verificar que nas localidades, entre as corredeiras, existiam animais que eram geneticamente diferentes dos que ocorriam à montante das cachoeiras, mas que, no entanto, pertenciam à espécie I. boliviensis”, esclarece.
De acordo com a pesquisadora, esses animais foram considerados unidades de manejo diferenciadas, ou seja, uma população isolada com alelos diferenciados (que são pequenas porções que compõem os cromossomos e que determinam características) das populações de boto da Bolívia. “Esses animais, há muito tempo, estavam restritos a essas localidades, cruzando somente entre si; e por isso, sem a troca de material genético com a população de botos da Bolívia; gerando assim, um material genético diferenciado. Essa população isolada era única e com a construção das barragens e o alagamento das corredeiras, possivelmente irá desaparecer no futuro,” lamenta.
Ainda segundo a autora, além do descobrimento dessa população diferenciada de I. boliviensis entre as corredeiras; foi possível, utilizando os dois tipos de marcadores genéticos, DNA-mitocondrial e DNA- nuclear, observar que com exceção de Teotônio, as outras cachoeiras não eram barreira total. “A cachoeira de Teotônio separava duas populações distintas, e impedia que os botos à jusante subissem a cachoeira. No entanto, os botos acima de Teotônio às vezes, a ultrapassavam. Esses resultados já haviam sido constatados em trabalhos anteriores, a novidade é que as populações abaixo de Teotônio, embora tenham DNA mitocondrial da espécie de boto da Bolívia, possuem a maior parte de seus marcadores nucleares da outra espécie de boto, I. geoffrensis; indicando a presença de híbridos. Quando, como e aonde as duas espécies se encontraram ainda não é conhecido, assim como, de que forma se deu início a todo o processo de formação dessa zona, onde se encontram botos que possuem, em seu genoma, material genético das duas espécies. Por isso, estamos dando continuidade aos estudos genéticos desses golfinhos no Rio Madeira, com o apoio da FAPEAM e do CNPq”, ressalta.
Mas, as surpresas não pararam por aí. A pesquisa mostra ainda que atualmente parte da área de estudo está situada entre as usinas hidrelétricas de Jirau e Sto. Antonio, que inundaram recentemente, eliminando oito das dezoito corredeiras. Assim, as poucas barreiras que existiam sumiram, por isso, é provável, conforme revela a pesquisadora, que essa população diferenciada se misture a população que estava restrita a área acima das corredeiras. O que para a ciência e para a humanidade é uma perda muito grande. “Essa população se manteve isolada, desenvolvendo uma unidade de manejo diferenciada por milhares de anos. Se as corredeiras ainda atuassem como barreira total, seria possível ao longo de muitos anos a formação de uma nova espécie de boto-vermelho, como parte de um processo evolutivo normal. Agora, sem as barreiras, é provável que esses botos tenham se misturado às populações à montante, fazendo com que o material genético diferenciado seja diluído ao longo das gerações, através do cruzamento com os botos da Bolívia. Então, a unidade de manejo que acabamos de descobrir irá desaparecer”, lastima.
Já essa outra autora do artigo, que estuda os botos da Amazônia há mais de trinta anos, comemora os novos dados. Para ela, conhecer a Amazônia e sua rica biodiversidade pode auxiliar a ciência a achar novas estratégias de conservação desses mamíferos, símbolos da região. “A descoberta de uma nova espécie ou uma informação inédita é sempre uma grande alegria para um cientista estudando os mistérios da história natural dos organismos. Mas, não se trata somente de uma satisfação pessoal. Cada vez que uma nova descoberta ocorre, a humanidade fica mais rica e ao mesmo tempo a ciência constata o quanto ainda temos para conhecer, principalmente no que diz respeito à distribuição das espécies e à biodiversidade da Amazônia”, revela Vera da Silva.
Da Silva ressalta ainda que as primeiras descobertas sobre a classificação dos golfinhos amazônicos ocorreram no século retrasado, e esses novos estudos vêem reafirmar a importância da ciência para o equilíbrio ecológico. “Desde as expedições dos grandes naturalistas europeus na Amazônia no século XVIII quando coletaram e descreveram as primeiras espécies de golfinhos fluviais, praticamente não houve mais estudos que questionassem a classificação dos botos da Amazônia. A confirmação da espécie boliviana e sua ocorrência em águas jurisdicionais brasileiras é muito significante para o Brasil. Hoje somos o país que abriga o maior número de espécie de golfinhos fluviais no mundo e essas espécies precisam ser protegidas e melhor estudadas”, afirma.
Essas descobertas foram frutos dos esforços dos pesquisadores Waleska Gravena, Izeni Farias e Tomas Hrbek, membros do Laboratório de Evolução e Genética Animal – Legal da Universidade Federal do Amazonas – Ufam; Vera M. F. da Silva, chefe do Laboratório de Mamíferos Aquáticos – LMA do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa/MCTI, Maria Nazareth F. da Silva, curadora da Coleção de Mamíferos do INPA. Eles contaram com a colaboração logística da Associação Amigos do Peixe-boi – Ampa, instituição não governamental que recebe incentivos da Petrobras, por meio da gerência do Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia. E financiamentos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e agências de fomento internacionais (Scott Neotropical Fund e Society for Marine Mammalogy).
O artigo intitulado “Living between rapids: genetic structure and hybridization in botos (Cetacea: Iniidae: Inia spp.) of the Madeira River, Brazil” (Vivendo entre corredeiras: estrutura genética e hibridização em botos (Cetacea: Iniidae: . Inia spp) do Rio Madeira, Brasil), foi publicado em janeiro desse ano na conceituada revista, Biological Journal of the Linnean Society, do Reino Unido.
Por Séfora Antela – Ascom Ampa
Foto: Waleska Gravena